quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Crônicas de Eliane Gouveia









- Maratona de crônicas -
     - sete textos -

Eliane Gouveia



01
O VESTIDO DE FESTA

Mal a Avó pisou no Apê e a Menininha já a estava puxando pela mão.
_ Vó, vem cá ver uma coisa!
A Avó tentou enrolar um pouco:
_ Peraí, dexô tirar meu sapato.
_ Vem, Vó, vem ver uma coisa!
_ Péra, vou deixar as malas no quarto.
_ Vem, vem, por favor, Vó!
Até que a Avó cedeu e foi.
A “coisa” era uma sacola da “Minêi” com roupinhas de boneca. 
Continha um vestidinho, um “bêibidol” e uma fraldinha descartável.
_ Que gracinha, você fez a mala da sua filhinha? 
_ Fiz!
_ Num sabia que ela também ia viajar conosco!
_ Vai, Vó, mas ainda não tem roupa para a festa.
Então a Avó ouviu a temida pergunta:
_ Vó, “PÓDE” fazer um vestido para a Malu?
A frase, formulada assim, com a silepse do pronome, passa inexoravelmente de interrogativa para imperativa.
“Vó, PÓDE fazer”, significa exatamente: “Vó, você VAI fazer!”.
E num adianta espernear com argumentos do tipo: na sua casa num tem tecido, num tem linha, num tem tesoura, num tem agulha.
Nada convence a Menininha!
Se vira!
Inventa um pedaço de “não-tecido” que sobrou da fantasia do Dia da Primavera na escola, descobre um kit de primeiros socorros para roupas que o Pai trouxe do hotel, pega uns lacinhos de fita antigos (de colar com sabonete na careca da Neném).
Inventa, que não tem saída!
E o vestidinho se faz!
_ Mas Vó, “PÓDE” fazer uma capa também?
Ai, ai, ai meu pai! Capa de que jeito, com que pano?
Asas à imaginação e desmancha-se o saquinho de seda transparente, porta sachê de sabonetinho. 
E ...txârânnnn!!!
Ficou linda a Maluzinha vestida de azul turquesa, capinha esvoaçante, lacinhos rosa e lilás.
Modelito confeccionado, “ateliê” organizado, roupinha na mala, seguiu-se a viagem!
“Vamoscomdeusenossasenhoracapetinhatrástocandoviola!”
Chegando à festa, Maluzinha vestida de “Elza”, abafa na sua primeira aparição no “ráiguisoçáite”.
Lá pelas tantas, a Menininha, exausta, dormiu, e a boneca ficou esquecida sobre uma mesa.
A festa “bombou” até as quatro da matina, quando os últimos convidados voltaram para o hotel.
De manhã, a Avó recebe o telefonema angustiado:
_ Mãe, você trouxe a Maluzinha da festa ontem?
_ Não, por que?
_ Porque eu acho que ela sumiu!
E começou o rebu. 
Uótizápis comendo solto no grupo da Família.
“Alguém viu a boneca?”
“Uma bonequinha de vestido azul?”
“Táva em cima de uma mesa!”
“Vi, não.”
“Nem eu!”
“Nem eu também!”
“Quem saiu por último?”
“Acho que foi a Tianem.”
“Calma, vamos voltar ao clube, quem sabe o pessoal da limpeza achou e guardou.”
Voltou-se ao clube e nécas de pitibiribas!
Drama instalado, tensão no ar até que a Menininha pergunta: 
_ Pai, cadê a Maluzinha?
O Pai engole seco e responde evasivo:
_ Deve estar na sacola dentro do porta-malas.
E o carro segue rumo à casa dos aniversariantes para as despedidas e agradecimentos pela festa maravilhosa.
Então.... Aleluia!!! 
Tianem, última a sair da festança, que ainda num havia ligado o zápi aquela manhã, achou a boneca abandonada e guardou junto com os presentes.
Alívio geral, alegria, despedidas, beijocas, lágrimas de emoção.
Todos entram no carro para a viagem de volta.
A avó ajeita o cinto de segurança da Menininha, coloca a boneca em seus braços e diz:
_ Querida, “PÓDE” grudar os olhos na Maluzinha até chegarmos em casa?

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Eliane Gouveia


 02

ERRO DE PORTUGUÊS

A dona do salão comtemplava orgulhosa o letreiro pintado na fachada:
“FULANA´S Cabeleireiros”.
O pintor já ia descendo da escada com a lata de tinta e o pincel, quando o homem passou, olhou, leu e falou:
_ O nome do seu salão está escrito errado!
A moça olhou desconfiada para o transeunte e indagou:
_ O que foi que o senhor disse?
_ Eu disse que há um erro de Português aí!
_ Como assim, num tem erro nenhum aqui!
Implicante e metido a “professor do mundo”, o homem reafirmou:
_ Tem sim, tem um erro aí!
O pintor, no alto da escada, prevendo a demora do bate-boca, sentou-se no último degrau, pendurou o cabo do pincel entre o indicador e o polegar, muniu-se de paciência e ficou a brincar de pêndulo.
A dona do salão, irritadíssima, retrucou:
_ Se o senhor acha que tem um erro aqui, então prova!
_ Eu num tenho que provar nada! Só sei que tem um erro, e pronto e acabou!
Já meio insegura com a segurança do outro, a moça ponderou:
_ Como vou saber se o que o senhor tá falando é verdade?
Ele teve uma ideiabrilhante:
_ Pegue um catálogo telefônico e olhe como estão escritos os nomes dos outros salões.
A moça foi até a padaria da esquina e pediu um catálogo emprestado.
Entregou-o ao homem que abriu direto na letra “C” e apontou triunfante:
_ Aqui, ó: LAUD´SCabeleireiros, BELCabeleireiros, GENICabeleireiros, JURA Cabeleireiros, DORA Cabeleireiros, tá vendo?
Muito sem gracinha a cabeleireira concordou com o erro e perguntou:
_ Mas e agora, o que é que eu faço?
O homem, orgulhoso do seu triunfo, replicou:
_ Sei lá, se vira! O que eu sei é que tava errado!
E foi-se embora todo exibido, deixando atrás de si a moça encafifada e o pintor empoleirado na escada!
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Eliane Gouveia




 03
ALEITAMENTO MATERNO

Alicinha, entusiasmada com a chegada da Cadelinha, foi fazer compras no “Pétixópis”.
Estava avaliando os artigos quando a vendedora se aproximou e:
_ A senhora está precisando de ajuda?
Alicinha “adorava” aquelas abordagens “Mêibi a Rélpi?”, mas se conteve e respondeu evasiva:
_ Obrigada, estou só olhando uma vasilha de ração para uma filhote.
_ Ah, que gracinha, de que raça ela é?
_ É uma “Fox-Latinha”.
_ E que ração ela está comendo?
_ Por enquanto eu estou dando só leite pra ela.
_ Nossa!!! Mas a senhora num pode dar leite Humano pra cachorro!
Alicinha largou a vasilha na prateleira e olhou espantada para a moça.
_Uai, mas eu numtô dando leite Humano, eu estou dando leite de Vaca!
_ Pois intão, isto que eu falei: leite que os humanos bebem!
_ Ah, bom! Sendo assim, então...
Alicinha suspirou aliviada!
Por um momento temeu que a boçal houvesse pensado que ela própria, Alicinha,estivesse amamentando a cachorrinha!
Agradeceu, saiu, e foi fazer suas compras noutra loja,onde se vendesse artigos para cães, digamos, maisCaninos!
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Eliane Gouveia

04
LEMBRANÇAS...

Querida comadre, hoje passei em frente à sua antiga casa e a vi caída ao chão.
E senti vontade de chorar.
Por alguns segundos um filme se revelou em minha memória.
Vi a entradinha lateral, o portãozinho de madeira por onde eu sempre passava, o corredor comprido que ia até a porta da cozinha.
A casinha de despejo, trançada de teias de aranha, com as estantes cheias de livros antigos, a Coleção do Tarzan, o Egípcio...
O terreno no fundo com os galos de briga atrás das telas do galinheiro.
A figura sisuda de seu pai, a timidez do Paulinho, o olhar maroto do garoto Horácio, as bochechas rosadas do pequeno Vinícius, a beleza delicada da doce Valéria, os olhinhos azuis da vovó Djanira, a “fofura” da simpática Verônica.
E a imagem dela, a Mãe Terezinha, aparando as arestas, enrolando pães de queijo para o lanche, dois de cada vez, numa habilidade imprescindível a quem desempenhava múltiplas funções de esposa, mãe, mestra, mulher e amiga amorosa.
Voltei da viagem saudosa, olhei as ruínas e pensei:
“Quem bom que eu pude partilhar destes momentos felizes!”.
E então eu chorei.
Mas não foi de tristeza, não.
Chorei foi de gratidão!
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Eliane Gouveia.

05
AMOR DE RUA


Às cinco horas da manhã ela acorda com os gritos.
Aguça o ouvido.
O som se repete.
São mais gemidos do que gritos, seguidos de uma tosse meio cortada.
Chama o filho.
_ O que será isto?
O moço se levanta, vai até a porta.
_ Não é nada não, mãe, é só um bêbado.
E torna a dormir.
A mãe já não dorme mais.
O som intermitente, doído, a tosse, tudo a impressiona.
Olha pela janela vê o vulto caído na calçada do outro lado da rua.
Ainda está escuro.
Angustiada a mulher continua espiando em vigília.
Amanhece.
E lá está o corpo frágil postado de bruços.
As mãos sob o abdômen, as pernas finas cruzadas uma sobre a outra.
A camisa suja, toda molhada do lado de baixo.
_ Urina, vômito?!
A cena a aflige.
_ Coitadinho!
Ela vai à cozinha, côa o café, volta à janela.
_ Será que tem mãe?
Olha de novo.
_ Coitadinho!
Será que está morto?
_ Coitadinho!
_ Podia ser meu filho!
_ Coitadinho!
Se tivesse coragem ela iria até lá e o traria para dentro de casa.
A todo o momento as palavras do Mestre ecoando em seus ouvidos:
“Amai o próximo como a ti mesmo”.
Ela ama, mas sente-se impotente, fraca, covarde.
Alguém diz:
_ Tem que chamar a Polícia para retirar o bêbado de lá.
Ela sente certo alívio.
Boa idéia!
A Polícia também é o próximo amoroso e está mais acostumada a ver estas coisas.
“Estas coisas”: a Vida caída ao chão, junto com os sonhos, a saúde, a dignidade, a esperança de um futuro, de um Amor.
A mulher conheceu um homem que abrigou um bêbado em seu alpendre por muitos anos.
Segundo a história, o bêbado era um sujeito bom e trabalhador, mas quando “invernava” na pinga virava um “chato de galocha”.
O dito homem o acolhia em sua porta todas as noites de bebedeira, dava-lhe de comer, aplicava-lhe remédios, dava-lhe uma coberta para proteger-se da madrugada fria.
Este homem amava o próximo sem covardia.
Ela não!
Ela até ama o próximo.
Mas apesar de querer muito, não consegue pôr em prática este Amor.
Ainda que não fosse um “Amor de dentro de casa”, que pudesse ser pelo menos um “Amor de alpendre”.
Não é.
Seu Amor é Amor de sarjeta, Amor de rua!
Coitadinha!!!

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Eliane Gouveia

06
NUANCES

A mulher foi à papelaria procurar uma caixa de lápis de cor de qualidade melhor do que “aquela” que todo mundo tem e que é meio ruim.
Encontrou uma prateleira lotada com “a de sempre” e perguntou se a loja não vendia outra marca.
A vendedora disse que sim, conduziu-a a uma outra gôndola e mostrou uma caixa de lápis de cor, importada.
Os lápis eram um pouco mais grossos e um pouco mais caros do que os da marca nacional.
A mulher então quis saber o que os lápis importados tinham de diferente dos nacionais.
A vendedora, munida de toda ênfase, explicou:
- A diferença é que estes são mais grossos, de outra marca e mais caros!"
Estupefata e perplexa, a mulher comentou:
- Ah, tá... Entendi! Sendo assim então...”
E saiu da loja para procurar em outro endereço uma caixa de lápis de cor com “diferenças” mais específicas.

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Eliane Franco Guimarães Gouveia​


07
ELIXIR DA MELHOR IDADE

(“Está naquela idade inquieta e duvidosa, que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa, um pouco de menina e um pouco de mulher...” -Machado de Assis – do poema Menina Moça.)
                           
A mulher entrou naquela idade duvidosa “desfalecido-botão-despetalada-rosa”, e, ao começar a sentir os mal-estaresinerentes à nova faixa etária, foi pedir ajuda à amiga Farmacêutica.
_ Quero que você me prepare um Elixir da Juventude, da Saúde, e da Felicidade.
Lápis e papel na mão, a doutorase preparou para anotar o corolário.
_ Conte-me tudo o que você está sentindo.
_ Uai, eu estou sentindo diversas coisas.
Eu durmo, mas meu sono não é reparador;
Quando alguém liga um sonzão estridente, sinto vontade de pegar um porrete e dar na cabeça do cidadão;
Minha paciência com gente besta, está “a zero”;
Antes eu não me intimidava com desafios.
Hoje tenho medo de tudo.
Às vezes sinto receio até de atravessar a rua;
E, finalmente, ando num desânimo enorme para o trabalho!
Eu que “desmontava” uma casa grande todinha em faxina,hoje em dia, só de pensar em arrumar minha cama já me dá uma canseira danada!
E então, querida, existe remédio para mim?
A amiga releu as anotações, pensou um pouco, olhou para ela com aqueles seus olhinhos maliciosos e respondeu:
_ Bom, vamos por partes:as noite mal dormidas, a irritabilidade, a falta de paciência, sintomas clássicos desta fase da Vida, são facilmente extinguíveis com Florais de Bach.
Os receios, medos e inseguranças são tratáveis com injeções de Fé.
Agora, já o desânimo para o trabalho num tem nenhum remédio em toda Medicina!
_ Uai, num tem remédio, por que?
_ Porque é preguiça mêsss!!!

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Eliane Gouveia


                                     

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