quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Crônicas de Dr. Juarez Moraes de Avelar

   





Doando Sangue e Amor
                                                                  Juarez M. Avelar
Em 1970 eu morava na 38a Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro, cursando o 1o ano do Curso de pós-graduação em Cirurgia Plástica, ministrado pelo professor Ivo Pitanguy. Para suprir minhas necessidades econômicas, dava plantão semanalmente em um Sanatório de psiquiatria das 7h00 de domingo às 7h00 de segunda-feira, para não prejudicar minhas atividades no Curso. Atendia e prestava assistência aos mais de 120 doentes mentais que ali viviam em regime de internação. Ao término dos plantões, às 7h00 da manhã de segunda-feira eu saía do Sanatório e voltava à Santa Casa para participar das cirurgias que ocorriam na 38Enfermaria.
Numa segunda-feira do mês de junho, permeada por uma agradável atmosfera de inverno tropical, eu cheguei à Santa Casa e fui caminhando apressadamente pelos imponentes corredores daquela secular instituição para chegar à 38ª Enfermaria. Eu estava atento ao programa cirúrgico daquela manhã para participar como auxiliar das cirurgias estabelecidas na reunião da 6ª feira anterior, organizada pelo Prof. Ramil Sinder e coordenada pelo Prof. Pitanguy.
 A Santa Casa é um histórico prédio que exibe uma estrutura deveras peculiar, cujas características denotam em sua totalidade uma construção erguida no Século 19 e já desgastada pelo tempo. O piso da porta de entrada estava carcomido pela constante passagem das pessoas, as compactas paredes com um metro de espessura e todas revestidas com azulejos portugueses brancos e azuis, o pé-direito com mais de oito metros de altura e enormes portas de madeira entalhadas com desenhos esculturais em alto-relevo impregnam toda a área construída com a solenidade típica dos mosteiros claustrais.
Para chegar à Enfermaria que se situa no 2o andar do último prédio do complexo arquitetônico, era inevitável percorrer os longos corredores e passar pelas dependências do Laboratório localizado no andar térreo, antes de subir as escadas ou adentrar no velho elevador que ostentava uma solene e impessoal porta pantográfica.

Naquela manhã ao caminhar pelo último corredor e aproximando-me do bloco onde fica a 38a Enfermaria, notei uma longa fila das pessoas que aguardavam atendimento no Laboratório de Análises e Banco de Sangue. Dentre as numerosas pessoas naquela fila sobressaia um senhor negro, alto, magro, vestindo roupas claras e limpas, contudo puídas, certamente pelo tempo de uso, que me olhava com insistência.
Seus olhos acompanhavam meus passos, com inusitada curiosidade e, à medida que dele me aproximava, seu olhar era ainda mais incisivo, como se quisesse dizer-me algo ou necessitasse de alguma informação importante.
Há aproximadamente dois metros de distância daquele cidadão, percebi que era inevitável dirigir-lhe uma palavra em atenção ao seu insistente e vigilante olhar para mim. Assim, amistosamente disse-lhe um bom-dia, ao que ele respondeu:
-Bom-dia, doutor.
Ele demonstrava sinais efusivos de alegria diante de meu gesto, e com expressão de contentamento que iluminou seu rosto emagrecido nem tato pela idade, mas como sinais de precoce envelhecimento, deixando-me ainda mais intrigado. Senti necessidade de dizer-lhe algo mais que um cordial bom-dia. E assim disse-lhe:
-  O senhor veio fazer exames?
Indaguei simplesmente com o propósito de dar-lhe a oportunidade de um eventual diálogo.
-    Não, doutor, não vou fazer exames - respondeu.
Sua face continuava transmitindo curiosa alegria decorrente do curto diálogo estabelecido entre nós, e continuou:
- “Estou aqui, doutor, para doar sangue. Há três anos minha filha morreu, nessa mesma Santa Casa, vítima de leucemia. Graças aos médicos daqui e das inúmeras transfusões de sangue, minha filha viveu mais um ano depois daquele triste e fatal diagnóstico que confirmou sua doença. Por causa das transfusões, pude conviver com minha filha por mais algum tempo. Depois de sua morte, voltei aqui para saber como poderia retribuir um pouco do muito que a Santa Casa e os médicos fizeram por minha filha. Sou um homem pobre, trabalho como lavrador na zona rural de uma pequenina cidade no sul de Minas, não tenho dinheiro, mas fui informado que posso doar sangue uma ou duas vezes por ano. Assim venho aqui de vez em quando porque quero retribuir com meu sangue a alegria que os médicos me proporcionaram prolongando a vida de minha filha, mesmo que tenha sido por poucos meses. E hoje é um dia desses, doutor. Estou aqui para doar sangue. Penso assim poder ajudar outras pessoas, como o sangue de outras pessoas ajudou a prorrogar a vida de minha filha ”.
Nunca mais vi aquele senhor, mas esse episódio ficou indelevelmente gravado em minha memória pela sincera expressão de gratidão, amor e esperança emanados de suas palavras e que traduziram em plenitude valores sublimes, como a solidariedade e a fraternidade, ambas cada dia mais escassas, mas felizmente, não extintas.
Enquanto houver almas caridosas, a esperança de um mundo melhor, mais justo e mais fraterno, sobreviverá aos escombros do egoísmo. Embalado pela emoção que vivenciei e aqui descrevo, elaborei um pensamento poético que reflete a essência daquele episódio que vivi no início de minha vida profissional.
Esperança
Bom seria se não faltasse coragem e não existissem temores!
Bom seria se não faltasse alegria e não existissem dores!
Bom seria se não faltasse sorriso e não existissem rancores!
Bom seria se não existissem espinhos e não faltassem flores!
Bom seria se não existissem trevas e não faltassem cores!
Bom seria se não existisse ódio e não faltassem amores!



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