quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Crônicas de Whisner Fraga

 



(três textos)


 01  -    Sobre peixes e homens
Whisner Fraga

Carlinhos ajeita o braço de Pedro nos ombros da mãe. Mãe é colo. O menino se aquieta e avança em seu sono cômodo e legítimo. O barulho, a música, o céu encrespado não o incomodam. Uma toalha cobre as costas nuas da criança e sua cabeça repousa na segurança da mãe. Mãe é colo. Pedro nem de longe lembra o menino arteiro e festivo de minutos antes. Cansou de levar o peso das coisas. Uma criança de dois anos não deveria ter fardo nenhum para transportar. Mas tem. É preciso entender e respeitar a carga de cada um.
A água está hostil. As ondas encrespadas surram o casco da embarcação. Nos equilibramos naquele marulhar sonolento, à espera dos peixes. Carlinhos desiste da pescaria e resolve se sentar ali perto de nós, ajudando na troca de anzóis. Estamos todos, até onde possível, em silêncio. Bebericamos uma cerveja enquanto os lambaris se escondem na bacia. Em breve serão iscas. Meu irmão, mais experiente, já está no terceiro tucunaré. Não temos inveja, pois a bebida está gelada e o dia está bonito.
É o último dia do ano, embora não saibamos ao certo o que isso significa. Não há ninguém saudoso, aparentemente. O vento se esfrega em nossa cara. De repente, algum animal espreita entre os arbustos. É raro algo silvestre se esgueirar pelos barrancos. Há muitos resorts transgredindo todas as leis de conservação ambiental. O bom é estar bem perto do rio e algumas toneladas de concreto não fazem diferença em nada. Multas não tiram a vontade de viver. É o que devem pensar.
A chuva nos rodeia e um chuvisco nos pega de surpresa, nos refrescando. Há cerveja para todos e ela está gelada. Pedro vai para o colchão arrematar o sono. Miltinho cochila na proa. Dali a pouco, se as traíras não aparecerem, iremos para outro ponto. Ainda não se consegue interpretar precisamente o comportamento dos peixes, de forma que é preciso esquadrinhar o rio. As linhas se entrelaçam, mas não importa. Recolhemos os anzóis e trabalhamos os nós.
De vez em quando uma canoa atravessa. Um barco. O movimento não é grande. Esperávamos mais gente no último dia do ano. Não que desejássemos um rio cheio de naus. Sei que em breve haveria um réveillon, mas isso não me comove. Os calendários, como bem se sabe, são todos ficção. E só me sensibilizam ficções mais elaboradas. Quantos papas se meteram nessas minúcias? Quantos legisladores? Nem a simbologia do ano novo é instrumento que valha.
Em breve seria réveillon e eu talvez dormisse um pouco mais cedo do que de costume, devido ao barulho estúpido de rojões manchando o céu. Não gosto de ruídos inúteis. Findo o passeio, convoco Ana e Helena. Minha mãe também retorna conosco. Com o correr dos anos, não nos importamos mais com essa história de ano novo. Calendários são ficção. E o tempo?


 02
Culinária

Whisner Fraga

Minha avó Virgilina emerge da cozinha, enxuga as mãos no vestido de corte bem reto e tecido estampado. Usa chinelos e se aproxima de nós. Estamos eu, meu pai, mãe e irmãos. É quase noite. Minha avó nos cumprimenta, ainda me chama de branquinho. E se senta, a cadeira debaixo de um quadro em que podemos ver Jesus e seu coração ornado com uma coroa de espinhos, no meio do peito. Eu tinha medo da pintura. Tinha medo daquele Cristo. Mas não tinha medo de vovó.
Minha avó Virgilina se senta, cruza as pernas e já coloca as duas mãos sobre o colo. De vez em quando penteia os cabelos com os dedos enrugados. De vez em quando ajeita o vestido. Seus olhos são muito vívidos, espera por notícias nossas, espera por qualquer observação que inicie o diálogo. Vovô, numa altura dessas, ainda está na copa, em frente à televisão. Esperamos ansiosos pelo convite. Sempre há o convite, mas o instante em que ele acontece nunca é o mesmo.
Então, após todas as novidades estarem gastas, esmiuçadas, ela nos chama para a mesa. Meu avô parece se esquecer do telejornal e se vira para nós. Então os pratos estão postos, é só aguardar. Até que chegam as almôndegas. O cheiro, podemos senti-lo já provocando nossa fome. Acho que havia também o arroz, o feijão, uma salada. Colocavam-me em meu prato duas, talvez três “armoncas”, que era como minha avó as chamava. “Armoncas”. Disso não me esqueço. Nem do sabor daqueles bolos de carne.
Minha avó Virgilina depois recolhe as louças. Volta da cozinha com algum doce. De mamão, de cidra, de figo, de leite? São surpresas. Então ela passa a mão um pouco fria em meu rosto, em meus cabelos. Gostou, branquinho?, ela quer saber. Eu encolho a cabeça, me refugio na timidez. De repente estou perto do meu avô Jerônimo e ele recolhe meu braço e me dá uns tapinhas, os dedos nodosos e entrevados.
Vovô Jerônimo pica o fumo, o canivete de lâmina carcomida. Enrola a palha, num trabalho meticuloso. Reclama do presidente, reclama dos preços, reclama da corrupção. Ouço atento. Saca o jornal, que está ao lado da televisão e aponta as manchetes. A vida não é fácil: inflação, desemprego, violência. Acende o cigarro, contrariado. Logo espia a gente, o semblante se desanuvia. Faz uma brincadeira qualquer e, logo depois, minha avó nos convoca para o sofá. Subitamente, é hora de irmos embora e não reclamamos. Também sentimos que é hora de ir. E não reclamamos.
Ah, e não reclamamos.


 03
Prefiro o medo

Whisner Fraga

Tenho medo.
Podem ter grampeado meu celular e a ligação de Ana perguntando se quero vinho no jantar corre o risco de cair em domínio público. As caveiras que Helena me manda pelo whatsapp podem significar qualquer coisa de maldita, de simbólico, se fora do contexto.
Portanto, tenho medo. E respeitem meu medo.
Olho para os lados ao atender o telefone e procuro ser bem claro quando digo algo. Repito, explico, esmiúço. Depois me lembro que aquele que interceptou legalmente minhas chamadas pode fazer o que quiser com as frases. Cortá-las, editá-las, processá-las. Teoricamente não adianta nada todo esse cuidado. Só que o medo nos deixa um pouco incoerentes. Experimentem.
Em uma mesa de bar quase me silencio. Embora vez ou outra me renda às trivialidades, tenho preferido a mudez. Pode ser que algum desses colegas seja um infiltrado. Há muitos hoje em dia. E um infiltrado, bem sabemos, sempre carrega um gravador, desde 1964.
Tenho medo quando percebo a divisão de tudo em apenas dois opostos. Não existe mais um terceiro lado e isso é preocupante, se evocarmos as antigas aulas de geometria. Certo versus errado. Desfavorecidos versus classe média. Intervenção militar versus não vai ter golpe. Cruzeiro versus Atlético.
Torcemos para estar do lado certo e o lado certo é aquele que sairá vencedor.
Tenho medo.
Os dentes das ruas estão armados até às cáries de fuzis, metralhadoras, cassetetes, algemas e pistolas. A boca desdentada da rua que baba um colostro de violência. Bispos vociferam, pregando a selvageria. Bancadas evangélicas espumam contra o aborto, mas defendem a morte aos inimigos. É por isso que as ruas estão banguelas: dente por dente.
Tenho medo das milícias que patrulham opiniões divergentes. As redes sociais estão cheias de infiltrados capturando telas. O certo é estar ao lado daquele que vencerá. Enquanto isso, resta-nos o temor.
Tenho medo que um dia me prendam porque estive do lado errado e declarei meu amor à verdade. Essa verdade que, coada, pode se tornar mentira. Que retalhada, exposta, descontextualizada, pode se tornar vergonha, condenada de antemão.
Tenho medo porque não tenho amigos. Nunca tive amigos e agora os tenho menos ainda. Em tempos de crise, a manada se dispersa em velocidade constrangedora. Por isso prefiro não ter amigos: para não me decepcionar caso tenha escolhido o lado errado. E não tenho amigos, porque a experiência me diz que eles são delatores. Incriminam nosso amor à verdade, simplesmente porque ela não tem o rosto ou o tom ou o lucro da verdade que defendem.

Tenho medo. Mas às vezes prefiro o medo à covardia.

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