segunda-feira, 5 de junho de 2017

Crônicas de Jair Humberto Rosa

 




Olhos penetrantes
                                                                       Jair Humberto Rosa

Onze da noite, saí do Colégio Comercial Professor Bernardo Leite Silva, na Praça da Liberdadee rumei para o ponto de ônibus, bem perto da escola, na Praça João Mendes. Era mês de março, fazia um mês que começara meu último ano do Colegial.
Cansado e com fome, seguira a rotina de todos os dias; de segunda a sextadeixava o trabalho às seis da tarde e ia para a escola, a pé, caminhando meia hora. Perto do colégio, um prédio antigo e com aparência de abandono, tinha um barzinho onde eu comia um pão francês com margarina e bebia um guaraná caçula, o que representava meu jantar.
Logo que entrei, sendo um dos primeiros, já que àquela hora, no ponto inicial poucos eram os passageiros, passei pela catraca, pagando minha passagem com as moedas que eu já levava na quantia certa. Não queria dar trabalho ao cobrador e também gosto de dispor das moedas que recebo, para não acabar perdendo-as.
Sentei-me no corredor, do lado direito, aproximadamente no meio do veículo.
O ônibus partiu pontualmente às onze e quinze.
Como de costume, logo que me sentei, uma sonolência tomou conta de mim, fechei os olhos e cochilei.
Uma forte freada num cruzamento causou rebuliço no ônibus, inevitavelmente me tirando do sono. Quase caí, mas deu para segurar-me na lateral do banco.
Sobressaltado, não tive mais vontade de fechar os olhos, o que me proporcionou a visão que tive logo no primeiro ponto de parada que se seguiu; cabelos pretos lisos e compridos, olhos amendoados, corpo esbelto. A moça subiu a escada, sentou-se na poltrona da esquerda, lado oposto ao que eu estava.   
Não obstante o frio reinante no centro da capital, senti uma forte onda de calor tomar conta de mim; despertei de vez, fiquei olhando fixamente para aquela figura impressionantemente bela, com as batidas cardíacas se acelerando significativamente.
Fiquei assustado por dois minutos, enquanto não desviava os olhos da garota,e não conseguia entender o que ocorria com minha reação ao que eu vislumbrava. Depois, sem forças para controlar-me, nem ao ponto de agir conforme o sujeito controlado que sempre fui, permaneci encarando-a ostensivamente. Senti que ela ficou incomodada a certa altura, devendo ter percebido minha atitude e podendo mesmo ter tido receio do meu comportamento. Olhou-me de forma rápida com seus olhos penetrantes, logo desviando o olhar.
No Butantã ela desceu, e eu fiquei olhando-a enquanto foi possível, esticando o pescoço para mirá-la pela janela, até que sua silhueta desapareceu de meu campo de visão. Pareceu-me que estava tendo uma perda irreparável, o que soava estranho para mim, que sempre achei que só se pode perder algo que se tem.
Seguiram-se dias de desassossego. Aquela figura angelical não saía da minha mente. E eu não sabia nem quem era, como encontrá-la, muito menos pensava em uma maneira factível de conversar com ela.
Todas as noites, de segunda a sexta-feira, até meados do mês de dezembro, entrei, sempre atento, no ônibus da linha 036, e atento permanecia até a parada do Largo de Pinheiros, embora ela tivesse embarcado, na única vez que tive a emoção de encontrá-la, na Nove de Julho. Eu tinha a esperança de revê-la.
Muitas vezescorri risco de ter acidente no trabalho, na fábrica em que eu atuava como operário, distraído com o pensamento voltado para aquela garota desconhecida que tanto me impressionara. Por duas vezes fui repreendido pelo chefe, que percebeu minhas atitudes. No colégio, à noite, a abstração era maior,e eu já não conseguia assimilar com clareza as aulas que eram ministradas.
Chegando as férias escolares, coincidindo com o período em que a produção da indústria tinha acentuada redução, os proprietários resolveram fazer várias demissões, e eu fui um dos escolhidos.
Como tive que arranjar outro emprego urgentemente, fui trabalhar no Jaraguá, e forçoso foi mudar de escola, não tendo mais oportunidade de ir ao centro da capital.
Foi mais uma perda, mas não tão sentida quanto a que me marcou para sempre; aquela figura feminina, linda e misteriosa, nunca mais saiu de minha lembrança.


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