segunda-feira, 10 de agosto de 2015

               UM DIA DE PAI

Whisner Fraga é escritor.


A criança se agita na cadeira de rodas. Beethoven incomoda. O pai acarinha os cabelos da criança. Pelo menos eu imagino que seja o pai. A julgar pela brandura, pela paciência e pela dedicação, só pode ser o pai. Tento não olhar muito. O ambiente está atulhado de pessoas discretas e não quero me destoar delas. O maestro se esforça. Imagino que deve ter regido mais de cem vezes aquela sinfonia. Por isso está concentrado, mas distante. Não consegue mais se emocionar com os acordes.
A música vasculha nossa consciência e nos entregamos. De repente, experimento uma melancolia, uma pequena depressão. Lembro-me que minha filha não foi conosco e sinto saudade dela. O amor é uma ferida aberta na qual borrifam limão. Arrisco novamente uma espiada e o menino agora está no colo do pai. Pondero que não há nada mais enigmático do que a paternidade. Estamos impregnados de genes alheios. Somos muito pouco nós mesmos. Vivemos os outros dentro de nós.
Penso nos pais que morreram e isso aliado a um coro que canta “An die Freude” me deixa um pouco mais triste. Recordo-me de meu cunhado, que faleceu de Chagas. Só ele sabia preparar o leite do jeito que minha sobrinha gostava. Os pais têm esse dom da exclusividade. Os pais mortos são persuadidos a experimentar a santidade, porque não podem mais errar. Viro o rosto uma vez mais e a criança agora está calma, o que é estranho, pois a nona está chegando ao clímax.
De meu pai carrego a memória dos voos. Pirralho, eu o acompanhei de Ituiutaba a Barra do Garças. Se não me engano, porque a gente vai amalgamando invenções ao que aconteceu de fato. E a verdade passa a ter um toque de fantasia, de liberdade, embora não deixe de ser verdade.Era um avião pequeno, um teco-teco, e talvez passássemos alguns apuros, quem sabe? Fica o toque límpido dos rios, quando eu tentava alcançar a boca dos peixes com o anzol inexperiente. E nunca exumei um piau daquelas águas.
Pai é esse padecimento, esse paradoxo. Havia ainda as aprendizagens, quando eu montava o trator e desandava pelas escarpas da fazenda do patrão, sob os olhares vigilantes do velho. Naquela época já era velho. “Além do céu estrelado, mora um pai amado”, entoa o coro, em alemão. Mais um pouco e as palmas rebentarão. O público quer a sua hora. O pai ajeita o filho, sabe que terá de carregá-lo até o carro, mas não se preocupa. Teve uma noite esplêndida. Só espera que vivam para sempre, que saboreiem indefinidamente essa proximidade. Só espera que vivam para sempre, embora saiba que isso é impossível.

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