terça-feira, 19 de novembro de 2013

Crônicas do Eugenio




 













01

AO HOMEM DA TERRA

 Eugenio Franco

acadêmico da ALAMI - cadeira 99

           

            Esta crônica é uma homenagem a um homem que participou da II Grande Guerra e defendeu a democracia, o direito de propriedade. Ele era fazendeiro e depois que fez a partilha da terra aos filhos, esses foram política e arbitrariamente esbulhados do seu direito de propriedade e desapropriados pelo INCRA.

Nascido da terra, braços fortes e pele morena, o homem simples trabalha a terra, rasga suas entranhas  dia após dia,  ano após ano. 
Ele  e a terra tem harmoniosa relação. Eles se conhecem e se gostam.
Eis que uma tal  democracia o chama e o leva a lugares estranhos e longínquos, onde ele deve lutar pela liberdade.
Em um lugar longínquo ele vê fogo, sangue, ódio e paixão. E  torna-se um guerreiro. A democracia é boa e justa.
Vencida a guerra, ele retorna, e, saudoso beija a terra.  E  constrói seu abrigo pequeno e simples, e seguro, e aconchegante. E reina absoluto, raiz,  fruto e  apêndice da própria terra.
Olha para o céu e sabe quando vem a  chuva, o  vento, ou o sol. Nada o perturba; respeita a terra e ela aprendeu a respeitá-lo.
E divide sua vida entre o amor pela terra e o amor de uma mulher.
A querida mulher, de seu ventre fecundo pariu muitos filhos e a terra  pariu, de seu ventre dadivoso, muitos frutos.
Então a mulher amada perdeu o viço, pereceu e retornou à terra.
Ele se abalou, mas encontrou nova companheira e prosseguiu sua jornada.
Um dia, a democracia que era boa tirou-lhe a terra; a cansada e sofrida terra; banhada com o seu suor.
Então, o guerreiro já combalido da luta, tombou ferido ao ver sua querida terra ser maltratada, dilacerada, mutilada. Ele e a terra, choraram em silêncio... Sua dor era impenetrável.
E o homem pereceu e retornou ao pó. Talvez esteja ao lado da mulher que tanto amou.
E a terra, silenciosa, permanece triste.


02
SONHOS E LEMBRANÇAS


Faminto, devoro as palavras a cada pensamento. E elas me queimam por dentro. E me dissolvem, sem que eu consiga vomitá-las. Por que então, insistir? Por que não deixar que permaneçam quietas?  Por que  revelar-me?
É uma vida comum, escrita na rotina simples dos dias que, se sucedem cada vez mais rápidos. E as longas madrugadas mal dormidas?
Como resistir a essa estranha força que me desgasta, que me trespassa como lança pontiaguda dilacerando minhas entranhas? Devo me desnudar de minhas verdades?
Eu tenho que liberar a minha história, ainda que seja por poucos momentos; ainda que seja levada pelo vento ou que se deforme como sombra. Ainda que se mostre inútil; ou que se transforme em nada.  Somente assim, aplacarei a minha fome e deitar-me-ei, tranqüilo, em minha solidão, em minhas reminiscências. Aí, poderei escavar a minha memória, começar minha busca.
 Lembrar-me-ei do garoto que insiste em se fazer presente em mim com seus pés descalços, com suas brincadeiras de herói e bandido, com seu jogo de bola, seus aviões de papel, com suas folhas coloridas de papel, com seus sonhos coloridos, suas estrelas cadentes, com seus sonhos.
 E a remota transfiguração, a travessia do adolescente inquieto e sedento e rebelde (mas não tão rebelde), ainda não foi totalmente sepultada.
Lembrar-me-ei do gosto adocicado da saliva que bebi no primeiro beijo. (Ou terá sido amargo?) É a Incandescência do sexo. É a sede da eternização. (Etérea é a primeira namorada que enfeitiça com olhos de maliciosa inocência!)!
E os beijos que vieram depois, pouco a pouco foram se diluindo,  tornando-se efêmeros e insípidos, (menos os do verdadeiro amor, que ainda me transubstancia em sua essência: amor-carne, amor-mente, amor-espírito, amor-amor.) Dos outros amores eu já me esqueci.
Os meus planos secretos, ah, esses eu não revelarei. Ainda nem foram elaborados...
Já as minhas saudades, as minhas dores e os meus medos eu posso compartilhar; a vida ensinou-me a compartilhar.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     
Os conceitos do pouco que aprendi são aplicados em mim mesmo a todo momento: minha geografia, minha ciência, meus desenhos mágicos, meus números mágicos, minhas poesias, (se é que abstrações podem ser chamadas de poesias).
A minha ansiedade então explode e lança seus estilhaços e suas fagulhas para todos os lados, com as palavras se despindo de qualquer sentido, ainda que expondo feridas ou espantando dores.
E assim eu soltarei meu grito dissonante. Assim eu libertarei o meu riso, vencerei os fantasmas que me enclausuram. 
E assim eu sonharei sonhos alados, que, entre nuvens e fumaça, me levarão aos confins; me levarão ao limiar da história e do tempo, me levarão ao limiar da vida.








03

LIÇÃO DE VIDA


         Há muito tempo havia nas proximidades de nossa fazenda, uma pequena escola rural mantida pelo município.
         Os alunos que a freqüentavam eram  filhos de peões das fazendas das redondezas  e também da nossa. Eles iam a  pé, a cavalo, de carroça ou de bicicleta. Alguns tinham que andar longas distancias.
         Com o tempo, foram se cansando; muitos acabaram  por desistir e o prefeito mandou  fechar a escola, e o  prédio ficou abandonado.
Sem emprego, o professor se apresentou a meu pai e se ofereceu para trabalhar. Era um homem magro e baixo; humilde e tranqüilo;  inspirava confiança.
         Foi contratado como zelador, para vigiar e ajudar nos pequenos afazeres da casa e para cuidar dos animais domésticos: os porcos, os cachorros, os gatos e as galinhas; em troca receberia um pequeno salário, casa e comida.
         Como a casa principal era pequena e a família era grande, ele fez de um depósito de ferramentas ao lado da garagem da camionete,  um quarto limpo e aconchegante, com poucos e improvisados móveis: uma velha cama, uma cômoda onde guardava suas roupas e objetos pessoais, uma caixa de madeira cheia de livros e uma pequena mesa sobre a qual ficava uma lamparina a querosene e um antigo rádio a pilhas que ele ligava todas as noites para ouvir as notícias. Não gostava muito de música e nem um pouco de futebol.
Em pouco tempo todos se afeiçoaram a ele que, mesmo com hábitos de eremita, sabia se fazer alegre e brincalhão.
Às vezes permitia que eu folheasse seus livros empoeirados e às vezes lia algumas pequenas histórias para mim. Ficávamos conversando por um bom tempo.
         Na época das aulas, quando íamos à  cidade, ele fazia companhia para meu pai.          
         Certo dia, tendo voltado para as férias de final de ano, mamãe me avisou que era aniversário dele.
         — Vá cumprimentá-lo, está fazendo sessenta anos!
         Era  uma bela  manhã; eu havia me levantado há pouco e comia um pão de queijo à janela da sala. Ele ainda não tinha me visto, estava de costas lavando um balde em um pequeno tanque que havia no jardim; parecia conversar sozinho ou talvez cantarolar uma canção antiga.
         Pulei a janela e me aproximei.
         Ele usava uma barbicha branca e tinha os cabelos ralos e brancos que estavam despenteados. Estava distraído.
         Bati palmas e cumprimentei-o:
         — Bom dia!
         Ele levantou a cabeça e  com um ar sério, respondeu:
         — Bom dia!... Você me assustou!
           Me desculpe... É seu aniversário, hoje?
           refeito do susto, sorriu.
         — É! – respondeu.
         Eu brinquei com ele e perguntei:
         — Parece que o senhor está mesmo ficando velho, hem?!
Ele ficou pensativo por uns instantes;  passou uma mão na cabeça e depois me olhou. Não sei porque, mas senti aquele corpo curvado e franzino agigantar-se diante de mim.
         E naquele momento, o homem simples, de gestos e palavras simples, pareceu-me transformar-se em um grande filósofo, ao fazer do óbvio, a sabedoria. Apoiou uma das mãos em meu ombro e olhando dentro de meus olhos, disse com serenidade:  
         — É  verdade,  meu filho,  é verdade... Mas só não fica velho quem morre novo!
Sem dizer mais nada, eu desviei o olhar, sai correndo e fui brincar.
Alguns anos depois, quando ele morreu, deixou um vazio naquela casa.
E aquelas palavras, ditas há mais de trinta anos, ainda ecoam como trovão, em meus ouvidos.  A  cada dia, a cada mudança em minha vida,  posso senti-las, posso  compreendê-las melhor.
         E  espero não   morrer novo.



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