domingo, 16 de setembro de 2012

O beijo à queima roupa

*Arth Silva


Nos rascunhos da memória, vez ou outra deparo-me com lembranças que me transportam no tempo, são golpes de nostalgia que de tão fortes, parecem saudade.

Em um desses dias chuvosos entrou pela janela o cheiro dos meus 8 anos (talvez 7, o calendário da memória nunca é preciso), época em que pelas tardes da estação “Infância” eu driblava as pernas da idade.

Lá estava eu no colégio católico, vestido à moda da época, roupas e penteado cuidadosamente escolhidos pela mamãe. A professora com voz de bruxa de programa infantil riscava a lição no quadro negro, me ensinando coisas que provavelmente nunca colocarei em prática.

O porteiro assopra com força o apito, era o recreio; sim, o recreio da Escola Infantil Anjo da Guarda era anunciado pelo soar de um apito. Como eu ia dizendo, o “recreio” era um momento sagrado, onde eu colocava as brincadeiras em dia e iniciava meu ofício de inventar estórias (qualquer dia escrevo sobre isso).
Mas foi na fila do lanche que a infância tomou sua decisão.

Zeca era um menino que andava sempre suado, portador de um sorriso banguela, era o único negro da escola, isso lhe rendia apelidos, que relevava desenvolvendo bom humor.
Mas enfim, Zeca chegou de mansinho, como que querendo furar a fila, baixou o tom de voz e proferiu sua frase de impacto: ─ Ei Arthur... Ta sabendo? O Leandro beijou a Camila.

Narrou a cena com uma perfeição de cineasta: “Leandro, menino porradeiro e malicioso, de estatura maior que a maioria das crianças da escola, intimidava com sua panca de brigão e descolado. Na espreita, deixou Camila ficar sozinha no pátio do colégio, quando teve a chance não perdoou, agarrou-a violentamente pelo braço e, sem proferir uma única palavra lascou-lhe o beijo sem dó”. Zeca me mostrou até as pegadas rasgadas que ficaram tatuadas na face do barro.

Aquela historia entrou nos meus ouvidos como um alarme de incêndio, minha infância estava pronta pra ser queimada com aquela revelação. Não que eu sentisse ciúmes ou algo parecido, era mais que isso, até aquele dia um beijo na boca era um privilégio exclusivo dos adultos, ou dos artistas da TV. Uma criança se submetendo a isso era um crime capital que, se descoberto pelos funcionários da escola teria uma punição sumária. E não deu outra, além de banguela, Zeca era um tremendo fofoqueiro, a notícia se espalhou mais rápido que herpes em carnaval.

Rapidamente os pais de Camila e Leandro já estavam na escola; entraram com ar de tragédia.
O suor rútilo e frio já era visível na testa de Leandro. Os dois alunos incriminados foram chamados para a secretaria e de lá ouvimos apenas frações de gritos, choros e ameaças por uma coleção indefinida de minutos. Camilla que era uma menina extremamente linda e branca feito a candura de um anjo, manteve aquelas olheiras de choro por semanas.

O Incidente, embora praticado em dupla, sobrou para nós humildes virgens de boca.
A professora gritava com toda sala, sua veia carótida estava a segundos de se romper. Disparava intimidações de que, se o crime, o pecado como também citou, ocorresse novamente todos seriam punidos; ameaçava nosso maior tesouro: caso fosse repetido o incidente, ficaríamos até o fim do ano sem recreio.
Essa maligna advertência causou a castidade de alunos por vários anos (alguns até os 18, outros eternamente). Atrasando inconscientemente nossa entrada no mundo das paixões físicas.
Aquilo ficou carimbado em nossas mentes: o beijo é um crime e nós, como bons meninos, jamais o praticaríamos. Mal sabíamos que um dia nos tornaríamos meliantes, furtivos criminosos armados até os dentes disparando beijos a queima roupa.

Tal trauma me afastou dos grupinhos da puberdade, onde a brincadeira da garrafa era a lei e o primeiro beijo acontecia. Ao invés disso eu ia pro meu quarto começar meus primeiros escritos, exercendo uma espécie de celibato sem batina, mas o instinto animal é mais forte e, com o tempo, acaba rompendo a barreira do platônico e indo muito além do toque de lábios.

Por razão disso, ainda hoje, mesmo após ter vencido esse trauma, o cheiro de chuva faz o projetor da memória rodar aquele filme de quando beijar era crime, e nosso instinto delituoso apenas adormecia.


*Arth Silva é um exímio autor de cartas de amor que nunca serão enviadas. É leitor compulsivo e escritor vocacional. Dono de um estilo rápido, mas sem banalidades, ao reler suas próprias obras acabou influenciando a si mesmo. Como escritor nada lhe dá mais prazer do que escrever o espanto e o fascínio nos olhos das pessoas. Nas horas vagas, quando lhe falta mentiras, inventa a verdade... Aos 2 anos começou a falar; aos 3 aprendeu a mentir; teve meningite aos 7; foi assaltado aos 15; e catapora aos 18. Odeia ervilhas.

Leia mais textos tragicômicos de Arth Silva na página: http://sonhandoaderiva.blogspot.com.br/


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